Este artigo foi publicado no JORNAL DE LEIRIA, na edição de 10 de Maio de 2007 e é da autoria de MOISES ESPIRITO SANTO (Sociologo e professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa). Como o tema está na ordem do dia e na nossa região as aldeia estão quase todas mortas, resolvi transcreve-lo e também porque o tema é caro ao António Delgado e já foi motivo de postagens no seu Ecos e Comentários.
"Como explicar aos jovens de hoje o que eram as aldeias portuguesas há quarenta anos? Por algumas fotografias e sequências de filmes podemos ver casas, ruas, pessoas e cenas agrícolas, mas não mostram aquilo que fazia com que uma aldeia fosse um microcosmos da cultura, um espaço fortemente integrador com um intenso poder de investimento afectivo, e um estreito círculo de solidariedade (com muita desconfiança relativamente aos «de fora»).
Eram um mundo de trabalho, de paisagens agrícolas miscigenadas de hortas, vinhas e olivais com árvores frondosas à beira das estradas; um ambiente de cheiros a fumo de lareira, a feno colhido, a palha moída ou a mosto; miúdos a correr e a jogar; patuscadas nocturnas da rapaziada; abundante criação musical e poética; histórias de vida contadas na adega; mexericos de velhas; olhares furtivos à passagem dum estranho; forte controle social. A cultura aldeã dava para vários tratados sociológicos. Nos anos 60, grupos de estrangeiros de classe média passavam parte das férias em Portugal a observar o sistema social aldeão; mas não só as aldeias «típicas»: qualquer aldeia. Todas eram primorosas criações da cultura rural: casas e varandas convidativas, elegantemente modestas com briosos ajardinamentos, caminhos de terra tortuosos e sombrios propícios ao devaneio onírico e aos medos nocturnos, conversas à porta e à janela, uma forte ligação casa-trabalho-rua e muito sentido de hospitalidade para que os «os de fora» fiquem com «boa impressão da gente».
A criação musical e poética era simplesmente notável. Podemos ver uma amostra no livro «Cancioneiro de Entre Mar e Serra da Alta Estremadura», de José Ribeiro de Sousa (editado pela C.M. de Leiria, 2004). O autor, sem sair da Costa de Baixo (uma «metade» da Costa, a outra é Costa de Cima, da freguesia de Maceira) coligiu, desde os anos 40, 1.027 peças de música popular e respectivos poemas, sacros e profanos, para as mais variadas situações da vida: ciclos do pão, do vinho, do azeite e do pinhal; cantares da água, das fontes e do rio; cantigas da lavra, do semeador, da sacha, da rega, das colheitas e das eiras; ciclo festivo anual; cantares das profissões; loas de romaria, cantigas de namoro; cantares sobre a toponímia local, sobre a vida familiar e social, cantigas do bom e de mau humor e da reinação, romances e xácaras… só para dar um exemplo do que o meticuloso autor deixou para a posteridade ao longo de 1.251 páginas em papel bíblia belamente encadernadas. «Mas [diz o autor] a Costa de Baixo em fins do primeiro quartel do séc. XX era muito diferente da actual e tinha um aspecto impossível de reconstituir. A quase totalidade das casas ditas ‘rabudas’ (com alpendre ou varanda) foi demolida; as eiras e casas anexas, as adegas e lagares, palheiros e barracões levaram o mesmo caminho. As grandiosas árvores multicentenárias que bordejavam os caminhos foram cortadas. As típicas ruas foram alargadas e perderam a graça das sebes verdes. Houve uma substituição quase total do ‘fácies’ do belo lugar de então». E, digo eu, isto é válido para todo o País rural. Um mundo perdido.
De facto, a vida era cantada. Cantava-se em todas as tarefas dos campos e da casa, para esquecer o tempo, para encurtar os caminhos, para animar os acompanhantes e para vencer as agruras. As mulheres cantadeiras (eram sobretudo elas que cantavam) tinham mais procura junto dos fazendeiros pelo bom serviço que faziam de animar o rancho -. aliás, a poesia e a música aldeãs, tal como os contos e os rimances são criações das mulheres (já os instrumentos musicais são invenções de homens).
E, hoje, o que é uma aldeia? Um pequeno aglomerado de habitações - cada vez mais dispersas entre campos abandonados. Trabalho agrícola? Nada. Vida social? Nada. Criação cultural? Nada. Ninguém nas ruas. Solidão de fugir.
Li há dias nos jornais que, segundo um inquérito europeu, os portugueses são, hoje, o povo mais triste da Europa. Porquê? Para responder cabalmente a isso teríamos de começar pelas cidades".
10 comentários:
olá Jorge
gostei da postagem porque este tema, tal como para o antónio, também me é muito querido.
de facto, eu que sempre vivi na "cidade grande" optei por vir morar para perto de Alcobaça por achar que esta seria uma das aldeias em que toda a gente se conhece, forma um grupo de amigos, defendem-se com o bairrismo...
fiquei desiludida! afinal, havia mais união no local onde eu morava, onde todos se entreajudavam, onde se faziam "farras de convivios sádios, onde se faziam noitadas a trocar ideias sobre uma nova galeria, uma peça que estreara, sobre o crescimento das crianças, etc.
aqui, entro em casa sem ver ninguém, faço as amizades nestes nossos blogs onde converso sobre os mais variados temas.
a vida social mudou muito: pouca aproximação entre as pessoas.
o computador (que é algo impessoal e frio) torna-se um ponto de convivio entre pessoas que à partida nem se conhecem mas que começam a criar laços de amizade.
não é mau mas faz-nos sentir falta de uma presença, de um partilhar, de um aperto de mão ou.. de um simples olhar!
Hoje muitas aldeias são apenas povoações fantasmas habitadas por 3 ou 4 idosos. Nas aldeias todos se conhecem e o viver é comunitário. Nas cidades vivemos cada vez mais sózinhos no meio da multidão. Embora ache que há outros motivos históricos, políticos e culturais que justificam o facto de sermos o país mais triste da Europa.
Caro Jorge,
Muito interessante este texto e de elogiar a iniciativa de lhe dar publicidade. Pela minha parte, ousei transcrever pra o Do Mirante.
Mas, para lá destes aspectos sociológicos, g+havia as precárias condições de vida, no tocante a falta de comodidades e de higiene. Cresci numa aldeia sem luz eléctrica e tinha de recorrer ao petróleo para estudar e fazer os trabalhos de casa. Não havia água canalizada nem saneamento. O rés-do -chão era a habitação de bois porcos e cabras.
Mas havia o sentimento de vizinhança, de interactividade, de entreajuda, um ombro e um braço para apoio do amigo. Hoje há hermetismo, indiferença ao outro, competição na ostentação sem bases, inveja.
A evolução das tecnologias não foi acompanhada por uma evolução humana e social. Têm sido perdidos muitos valores que estão a fazer falta, segundo a óptica de quem os conheceu.
Abraço
Meu caro Jorge
Parece-me que vou ser eu a abrir este espaço de diálogo, mas o tema é-me particularmente grato.
Com a minha idade, vivo já com algumas recordações que me transportam para esses tempos mágicos em que tudo nos parecia normal e a vida ia acontecendo naturalmente.
Vivi de perto duas diferentes realidades rurais, desde logo pelos usos e costumes de cada uma das regiões, Ribatejo e Minho.
Lembro com muita nostalgia as ruas de terra batida da pequena aldeia ribatejana onde a vida era brava em volta das vinhas. As mulheres, a meio da manhã levavam a "janta" aos "homes" que se vergavam á terra, de sol a sol. Á tardinha, reuniam-se estes na taberna da aldeia onde o vinho fazia das suas por entre uma jogatana de cartas.
A outra aldeia que me faz sonhar e por quem morro de amores, é minhota e nela vivi momentos de juventude que não se cansam de me atormentar.
Por aquela branca e estendida terra ao longo do Monte de Santo António, por entre caminhos estreitos de piso em lage e ladeados por muros de granito,pedra sobre pedra, corri e saltei atrás de tantos outros que comigo passaram grande parte da sua infância. Os hábitos eram diferentes, e nos verdes campos de milho eram as mulheres que curvadas e de foice na mão lhe davam o trato. Pela noite era norma juntar-mo-nos em casa uns dos outros e as histórias e cantigas vinham á baila sem grande esforço. Uma boa "malga" de "morangueiro" ou "verdinho" com uma brôa de deixar qualquer um de rastos, em volta da lareira, iam aquecendo as almas de todos nós.
Duas terras, duas realidades, a mesma vida comunitária, rude mas alegre, onde a electricidade era substituida por candeeiros a petróleo e a água tinha de se ir buscar á fonte.
Cada um tinha a sua vida, mas as desgraças e as alegrias eram de todos.
Eram assim as terras dos meus pais e meus avós. Não sei se conseguirei deixar tamanho legado aos meus filhos.
Obrigado Jorge por me teres levado até lá de novo.
Um abraço e bom fim de semana.
José Gonçalves
Querido Jorge,
Sabes quais são as minhas ideias deste tema pelas longas conversas que já tivemos e vamos tendo sobre estes microcosmos que se vão desertificando. tanto em Portugal como fora quando visitamos outros lugares e fazemos comparações. De facto em Portugal as aldeias tornaram-se espaços nada agradaveis e urbanizados sem nenhumas condições que possam os seus habitantes serem felizes: fios no ar, esgotos a céu aberto, falta de saneamento basico, estradas degradantes. casas velhas e em ruina. Cheirors desagradáveis, ostentação saloia, carros topos de gama misturados com casas tipi bidonVILLE...UM HORROR DE FUGIR E QUE OS POLITICOS NÃO SABEM NEM QUEREM RESOLVER. VEja-se no caso de Alcobaça com aqueles que "governam" o concelho. Sobre a solidadriedade deixo-te um comentário que é um extracto de um texto meu que foi postagem do "Ecos e Cementarios" e como via a minha aldeia em criança.
“ A minha aldeia era um pequeno lugar muito acolhedor que tinha como característica um idioma que se falava com o coração, apesar de ter muitas palavras e serem diferentes entre si todas eram sinónimas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não é que fosse limitado o seu léxico ou o seu sistema de convivência social. A razão era que todos estavam unidos entre si como que por uma corda e o que acontecesse a um, invariavelmente influía nos outros. Socialmente organizavam-se deste modo: Todas as mulheres da minha aldeia eram minhas mães e mães das outras crianças e todos os homens eram meus pais e pais de todas as outras crianças. Todas as crianças eram minhas irmãs e filhos de meu pai e da minha mãe e de todos os homens e mulheres da minha aldeia. Como os nossos pais e os nossos avós já tinham tido esta cultura fraterna eram os depositários da sua transmissão, por isso todos estávamos irmanados como numa família e se algum faltasse todos sentíamos a sua ausência ou esperávamos com alegria a sua chegada. Era assim a razão de existir naquele pequeno lugar, que era a minha aldeia. Por contraste só na cidade compreendi os seus ensinamentos , e como era diferente aquele idioma que se falava com o coração, onde as palavras coincidiam com o seu significado tal como vêm nos dicionários”.
triste ver las imagenes y que sea una realidad
un abrazo y un buen dia domingo
besitos
besos y sueños
Obrigado amigo Jorge por este reviver do passado.
Fizeste-me voltar aos meus tempos de menina´em que a alegria e o sentimento de verdadeira solidariedade imperavam nas relações de todos quantos habitavam a minha aldeia. É uma aldeia pequena que vivia como a grande maioria das aldeias portuguesas, da agricultura, criação de animais e alguns trabalhos de artífices.
O povo unido cultiva os campos em regime de "entre-ajuda". Num dia era o campo do Manel, no outro o do João e por aí adiante. As mulheres, para além da lida da casa e do tratar dos filhos, ajudavam nas sementeiras, na sacha da batata, do milho, do feijão etc e, na verdade, enquanto trabalhavam, lá iam cantando e rindo, alegrando o viver que era duro.
Cantar era uma necessidade dada a probreza em que se viva. Daí o ditado "quem canta seus males espanta". Á noite, finda a jorna campestre, os homens juntavam-se na taberna falando das agruras da vida, bebendo alguns copos de vinho enquanto que as mulheres, essas continuavam a sua faina, desta vez em suas casas, cuidando dos filhos, das roupas, da ceia e dos animais. Para elas não havia descanso...
Felizmente que a aspereza da vida mudou. Mas, infelizmente, mudou tudo. A solidariedade entre vizinhos desapareceu e deu lugar à competição desenfreada. O convívio deu lugar à procura das grandes superfícies, também hoje deignadas "o passeio dos pobres", os povos foram deixando as aldeias e procurando novos rumos, pelo estrangeiro ou pelas cidades e, aqueles que ficaram foram desenvolvendo o tal clima de solidão de que falas e, muitas vezes de saudade permanente dos ausentes.
Somos, de facto, um povo triste que durante anos demais foi explorado e amordaçado por um regime cego e ditador e que, depois dele, quando se pensava que o povo ganhasse ânimo, foi chegando o desânimo, muito por força dos maus políticos que nos têm (des)governado e pela incapacidade individual de união verdadeiramente fraterna. O colectivo ficou parado na democracia ansiada...
Reflexo de tudo isto é, salvo melhor opinião, o estado de abandono das construções das aldeias, a insensibilidade política autárquica para preparar os arruamentos para todo o tipo de transeuntes, a invasão dos espaços públicos por privados na mira do lucro mais fácil, a falta de brio dos homens e mulheres destes nossos lugares.
A civilização vai-se construindo por isso acho uma óptima ideia a publicação de estudos e escritos sobre estas matérias, bem como o exigir de acção aos nossos políticos para que, ao invés de fecharem os olhos ou favorecerem os amigos, melhorem os seus conhecimentos sobre urbanismo colectivo e desenvolvam acção tendenção à verdadeira inclusão nos espaços públicos, eliminando barreiras e criando condições de igualdade de circulação para todos, incentivando a iniciativa privada à recuperação do seu património arquitectónico, limpando os arruamentos de todos os obstáculos desnecessários e das ervas que vão tomando conta dos passeios etc.
Um Bom Fim de Semana para ti.
aterrei aqui por acaso e se calhar não por acaso gostei...
Quando fiz o meu comentário, nenhum outro me aparecia no artigo, daí ter afirmado que me parecia que iria ser eu a abrir o debate. Afinal não foi assim.
Não é importante mas repõem a verdade.
Um abraço
José Gonçalves
Caro Jorge,
Recordo-me com saudade das aldeias que todos tinhamos, em especial uma que visito com frequência no norte de Portugal, onde tenho lá família.
Mas até essa, já não tem as características de uma aldeia...
E como eles fazem questão de dizer ... até já é Vila...
É um facto que denota evolução, mas perderam-se outros valores tão característicos das aldeias, e onde naquela também imperava.
Um abraço.
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